A liberdade pessoal e a liberdade do outro


Herbert Spencer já o dizia, 'a liberdade de cada um termina quando começa a liberdade do outro'. Mas a reflexão que trago hoje é um mix de liberdade pessoal e o direito (ou não) à privacidade.

É polémico quando abordamos a questão de ter ou não acesso aos gadgets, aka telemóveis dos nossos parceiros. Eu sou apologista de que é de nosso direito ter a nossa privacidade, um sítio onde guardamos informação particular que só nós podemos ter acesso. É um conceito que aprendi desde muito nova quando tinha os meus diários onde escrevia tudo o que meu cérebro estivesse disposto a vomitar. E como nem sempre sai coisa boa, manter segredo era boa ideia. Daí os diários virem de série com um cadeado e uma chave (uma, não duas).

No entanto, bem sabemos que um telemóvel não é um diário mas sim um portal que dá acesso a conversações com outros diários, muitas das vezes conversações que preferimos não mostrar a mais ninguém a não ser à pessoa com quem conversamos. É de nosso direito usufruir desta liberdade pessoal, puder conversar, dizer o que nos apetece, desabafar, criticar, elogiar, cutucar... Mas e se o que fazemos, se esta liberdade pessoal tem impacto na vida do outro? Devemos mostrar ou manter a privacidade? E se o outro pedir para ver, teremos razão em evocar esse direito à privacidade mesmo sabendo que os nossos actos influenciam diretamente a vida do outro? Ou devemos, por respeito pela liberdade do outro, mostrar e esperar a consequência? 

Se eu sei que meu parceiro está a ter comportamentos que levam à duvida e que a minha vida está a sofrer impacto, poderei pedir para ver o telemóvel? Terá ele o direito de o negar?  E se o negar a faze-lo e isso interferir com a minha liberdade pessoal, entre ser feliz ou triste, continuar ou ir embora? Nao terei direito de saber e puder decidir? A liberdade pessoal dele está a interferir com a minha.

Não é difícil de entender que eu já tenho opinião formada. Eu acho que apesar do nosso direito à privacidade a mesma não deverá ser incluída no uso de gadgets que permitam partilhar a nossa vida com mais pessoas fora da relação e fazer disso segredo para a única pessoa no mundo com a qual não devemos ter segredos. A partir do momento em que nos envolvemos sério com alguém devemos aceitar que estamos a abrir mão de alguns aspectos individualistas. Já não somos só nós, somos um casal que para mim significa parceria, amizade, companheirismo e onde não poderá haver lugar para 'isto tu não podes ver'. É inaceitável que tenhamos permitido uma realidade destas acontecer e acharmos estar correctos quando nos negamos em mostrar ao outro um simples objeto que, pela sua simplicidade, foi criado para comunicar. E se não podemos deixar o nosso parceiro ver o que estamos a comunicar, então estamos com um problema. Porquê um outsider à relação do outro lado da linha viu a comunicação e o meu parceiro não pode? Não é ao meu parceiro que eu devo honestidade e sinceridade? Porque sentir-me ofendida no meu ego porque o meu parceiro pediu para ser actualizado se não há segredos entre nós? Não deveria ser normal podermos pegar no telemóvel um do outro sem sequer questionar ou pedir permissão? E melhor, pegar sem ter medo do que poderemos encontrar?

Dou valor aos casais que vivem esta liberdade pessoal tao saborosamente livre ao ponto de não se preocuparem minimamente com o parceiro ver o seu telemóvel. Invejo, para ser mais honesta. Isso para mim é respeito pela vida. Invés disso criamos ambientes tóxicos em que um simples toque de mensagem dá azo a nervosismo, a mau estar, a silêncios esquisitos e à construção de relações frágeis que se desmoronam ao fim de pouco tempo. 

Mas a normalização do secretismo, dos gadgets com códigos numéricos (inicialmente criados para proteger do roubo), de impressão digital, facial (e porque não anal) protegem o que achamos ser importante e deixam o que de mais valioso temos ser exposto, as nossas relações pessoais, o amor.

Muitos são os que, por defesa, dizem que o acto de pedir para ver o telemóvel é sinal de desconfiança. Entendo perfeitamente o raciocínio mas mesmo entendendo creio que é nosso dever apaziguar o nosso parceiro se, por qualquer motivo, sentiu a necessidade de o pedir. É o momento de maturidade para esclarecimento de dúvidas, e calmamente, conversar para entender porquê o nosso parceiro se sentiu fragilizado e trabalhar para que ele saiba que pode viver confiante. Se, pelo contrário, enchemos o nosso peito de orgulho e negamos, mesmo sendo boas pessoas e inocentes, estamos a alimentar um receio que brotou naquele momento, em vez de termina-lo. Ver o telemóvel não é uma ofensa, deveria ser sim um ato comum sem qualquer maldade associada.

Outros irão apelar aos segredos das amigas e amigos. As confidencias que os amigos fizeram e não são para serem lidas por mais ninguém. Mas que idade temos? Vocês acham mesmo que os casais não partilham os vossos segredos? É isso que faz de um casal uma equipa, companheiros de uma vida. Não é para deixar registo, então telefonem, vão tomar um café com a amiga, com o amigo e as confidencias morrem ali, sem testemunhas. 

Escolham e preservem o que realmente tem valor. 




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